sábado, 21 de fevereiro de 2009

Ciência e religião, uma reflexão (Parte I)

Seria presunção da minha parte, embora pareça muito natural que se faça isso antes de promover uma discussão acerca do assunto que proponho, tentar definir religião e ciência. É verdade, pois, que nem mesmo os filósofos mais inspirados foram capazes de tal proeza, mas como preciso começar de algum ponto, darei aqui apenas o que chamo uma definição filosófica da ciência e da religião, dizendo que ambas são sistemas de conhecimento que fornecem interpretações do mundo - natural e social - através de verdades instituídas a priori e/ou construídas a partir de um senso comum. Cumpre dizer que tal definição de forma alguma representa a visão dos filósofos sobre tais assuntos e pode (e deve) estar equivocada, mas por enquanto é o melhor que temos, então sugiro que sigamos em frente.

Verdade é que cientistas e religiosos fornecem interpretações diferentes sobre o mundo, a vida, a natureza, o universo, etc, e nesse ponto há interpretações para todos os gostos. Há quem diga que interpretações científicas e religiosas podem coexistir; há quem diga que não. Há quem diga que os primeiros estão certos, mas aquilo que os mesmos (ainda, talvez) não explicam abre espaço para a visão religiosa (...). Einstein, frequentemente "disputado" em uma queda de braços sem fim entre religiosos e não religiosos, no que confere a sua posição religiosa, nos dá pistas sobre a questão quando dispara que

"A ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega."


Sinceramente, dizer que tal frase é uma pista sobre a religiosidade de Einstein é uma atitude muito otimista face às implicações filosóficas que ela fornece, mas ao menos nos dá alguma inspiração para debater o assunto.

Nesse ponto, me ocorre um conflito sobre minha posição com relação ao assunto, pois apesar de procurar não tomar partido de lado algum e apenas conduzir a discussão, não posso negar que, como matemático, tenho uma leve tendência a me sentir mais amigável com a posição científica, fato que me faz pedir sinceras desculpas ao leitor pelas vezes que tomarei as rédeas (por motivos bons ou ruins) e argumentarei de forma pessoal. Para aqueles que temem que atacarei a religião, peço que continuem a leitura para verem que esse não é o intuito (e nesse contexto, não conheço bons motivos para fazê-lo); se forem céticos quanto a essa minha afirmação, o que seria ótimo, leiam a conclusão do artigo, onde explico minha posição com relação a religião, e depois voltem à leitura, caso desejem. Já que toquei no assunto, aliás - embora, assumo, antes do que desejava - vou colocar aqui minha opinião e ao mesmo tempo justificar minha iniciativa em escrever este artigo. Imito Einstein na construção do meu argumento, e digo que



Religião com ciência é sensatez; Ciência com religião é desonestidade.


Este artigo pretende ilustrar essa minha opinião (e aqui existe um bom motivo para colocá-la, pois preciso dar foco ao artigo) com exemplos onde existem conflitos entre a visão científica e a religiosa, o que penso ser mais interessante e menos cansativo do que embrenhar uma justificativa mais "teórica", digamos assim. Também dividirei o artigo em duas ou três partes, para que lê-lo não se torne a coisa mais difícil a respeito do mesmo. Por enquanto, chega de conversa e vamos ao que interessa.



A religião como objeto de estudo da ciência


Em seu livro Quebrando o Encanto - A religião como fenômeno natural, Daniel Dennett, filósofo norte-americano e professor da Tufts University (Medford/USA), defende que a religião pode e deve ser estudada pela ciência. Dennett justifica sua posição dizendo que

"É mais do que tempo de submetermos a religião como fenômeno global à mais intensa pesquisa multidisciplinar possível, aliciando as melhores mentes do planeta. Por que? Porque a religião é algo muito interessante para que nos mantenhamos ignorantes a seu respeito. Ela não afeta apenas nossos conflitos sociais, políticos e econômicos, mas os próprios significados que encontramos em nossas vidas. Para muitas pessoas, provavelmente a maior parte das pessoas na Terra, não há nada mais importante que a religião. Exatamente por esse motivo, é imperioso que aprendamos o máximo que pudermos a respeito dela."

Concordo com Dennet, pois acho a religião demasiadamente interessante e influente em nossas vidas para que vivamos a margem dos seus segredos. Além disso, o quanto não poderíamos lucrar, em termos humanísticos, conhecendo melhor a religião? Guerras, miséria, fome, corrupção, crimes, etc; quanto dessas desgraças não poderiam ser evitadas, ou pelo menos abrandadas, se tivéssemos melhor conhecimento a respeito da religião? E quanto dessas não sofrem influências diretas (negativas ou positivas) da religião? Sem dúvidas, Dennett tem razão: é mais que tempo de colocarmos a religião sob os olhos da ciência, de todas elas, tais como a biologia, a antropologia, a história, a física, a sociologia, etc. É mais que tempo; é mais que sensato! Religião com ciência, como disse, é sensata! Contudo, acho que essa é uma via de mão única, o que significa que, embora penso que a ciência deva investigar diretamente a religião, o contrário não deve acontecer de forma alguma. Devido a isso, provavelmente serei chamado de hipócrita por alguns dos que leram meu artigo de apresentação aqui no blog (What the bleep do you know? O blog Causarum Cognitio), onde digo que usarei da imparcialidade nos artigos aqui postados. Talvez tenham razão, talvez não, mas o fato é que, insisto, a religião não deve estar presente na ciência, simplesmente por uma questão de honestidade intelectual (e também porque não queremos os químicos, por exemplo, manipulando nossos remédios e tendo fé que eles funcionem, ao invés de testá-los). Justificarei essa minha opinião, aparentemente parcial e presunçosa, na segunda parte deste artigo. Por enquanto, para nos dar alguma base argumentativa, vamos dar uma rápida investigada no passado e ver como foi essa relação da ciência com a religião, e também como ela é hoje.



Uma breve história do tempo...


Historicamente, ciência e religião tem tomado a frente quando o assunto é explicar a natureza das coisas, da vida e do universo. Vimos a religião dominar mesmo o pensamento das grandes mentes da antiguidade, de tal forma a estar intimamente ligada com a filosofia e a ciência da época, perdurando imponente até a idade média. A história nos mostra, contudo, a humanidade emergir do obscurantismo desse período e mergulhar no pensamento renascentista, deixando de lado a visão completamente teísta para uma mais humanista, antropocentrica. Com o passar dos séculos, o secularismo se instaura em boa parte do mundo ocidental e antigos conceitos fundados pela igreja são substituídos por conceitos científicos, tais como o heliocentrismo e o evolucionismo, substituindo o geocentrismo e a verdade literal da bíblia, respectivamente. A igreja, por outro lado, defende seu território: instaura a Inquisição, a Caça às Bruxas, o Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos), etc, ao mesmo tempo que tenta conciliar alguns de seus dogmas com verdades científicas irrefutáveis (aceitação do heliocentrismo, por exemplo); perde espaço através dos anos, e dessa forma procura colocar sua posição na mídia, na ciência, nas escolas, na sociedade, etc, na busca pelos fiéis e procurando preservar seus dogmas, causando atualmente, como chamo ironicamente aqui, uma contrarreforma científica, levando inúmeros cientistas, céticos, críticos e ateus a defender o espaço da ciência. Exemplos não faltam: Carl Sagan, Sam Harris, Richard Dawkins, Daniel Dennett (citado acima), Steven Pinker, Christopher Hitchens, etc. E a coisa é séria! Tanto que hoje existe nos Estados Unidos e em alguns lugares da europa o movimento dos não crentes The Brights (algo como "Os Brilhantes", em português, título que, aliás, já causou muita polêmica), que defende uma visão de mundo naturalista. Enquanto isso...



A questão do misticismo na ciência


A margem desta guerra, mas muito provavelmente inpirados por ela, oportunistas de todos os tipos tentam conciliar ciência e religião, ou ciência, misticismo e religião, (ab)usando da confiança depositada pelas pessoas na ciência. A lista é grande: místicos, médiuns, astrólogos, pseudocientistas, cartomantes, visionários, curandeiros e todo mais um bando de "profissionais" inescrupulosos que falam em nome da ciência e prometem em nome da religião (e o contrário também). Para quem quiser entender melhor o que estou falando, basta dar uma breve olhada (breve mesmo) no "documentário" What the bleep do you know? (Quem Somos Nós?) e no livro/filme The Secret (O Segredo), que usam (assim como outras investidas charlatanistas) todo tipo de estratégia - tal como marketing e frases de autoajuda - para defender suas idéias pseudocientíficas, principalmente a pobre da Física Quântica, alvo preferido dos adeptos do "a física quântica realmente começa a apontar para esta descoberta: ela diz que você não pode ter o universo sem a mente fazendo parte dele..." ou mesmo "está provado cientificamente que um pensamento afirmativo é centenas de vezes mais poderoso que um pensamento negativo..." (esta última frase foi dita por um visionário - sim, um visionário - no filme "The Secret"). E eu me pergunto é como se mede um pensamento, ou como um visionário sabe coisas sobre o pensamento que hoje nem um neurocientista, um biólogo e um cientista cognitivo juntos saberiam responder! Vai entender...
É uma pena, pois, saber que essa onda de misticismo acerca da ciência envolve algumas vezes opiniões positivas de acadêmicos com grande gabarito intelectual, tais com a Dra. Leila Marrach Basto de Albuquerque, professora da UNESP, campus de Rio Claro/SP. Coloco abaixo um trecho de seu artigo que trata do assunto, onde a professora descreve a situação atual com suas palavras, e que pode ser encontrado na íntegra no Portal Unesp (Ciência e religião no tempo em que vivemos):


"Hoje, o religioso se expressa na linguagem da ciência e o cientista usa a linguagem das religiões. Filósofos esperam construir uma prática científica mais gentil com o auxílio de idéias religiosas. Sociólogos se voltam para o oriente em busca de sabedoria. Concepções de uma natureza animada e panteísta inspiram projetos ambientalistas. Astrônomos explicam o universo pelo seu poder criativo. Astrólogos auxiliam psicólogos na árdua tarefa de tornar as experiências humanas menos penosas. Médicos atestam a importância da religiosidade no tratamento e cura de doenças. Cientistas identificam equivalências entre o misticismo oriental e os modelos mais avançados da física. A compreensão da mecânica quântica é comparada ao estado de iluminação budista. Ondas, moléculas e átomos ganham sentidos transcendentes, distantes do materialismo científico. Energias revitalizam pessoas, objetos e moradias. Velhos esoterismos são recuperados, xamanismos são mobilizados e o criacionismo substitui, nas escolas, a nossa tão cara idéia de evolução. Uma folia!"


Com todo respeito à professora, que aliás é uma grande pesquisadora e especialista em sua área, a sociologia, fato evidenciado pelo seu currículo, devo dizer que discordo fortemente das suas opiniões acerca desse novo pensamento místico-religioso-científico, no que cabe às suas conclusões envolvendo as ciências naturais e exatas, pois não existem provas científicas que comprovem, por exemplo, que "energias revitalizam pessoas, objetos e moradias", nem evidências sérias ou relatos concretos que mostrem que "astrônomos explicam o universo pelo seu poder criativo" (o que seria o poder criativo do universo?), pelo menos não de astrônomos sérios comprometidos com a ciência e com a metodologia científica; tampouco podemos concluir que "ondas, moléculas e átomos ganham sentidos transcendentes, distantes do materialismo científico", a menos que se leve em conta cientistas místicos como o indiano Amit Goswami, "físico quântico" e místico assumido que, desde praticamente vinte anos atrás não pública um trabalho com credenciais científicas reconhecidas pelas universidade onde trabalha (em breve o Rafael Viegas, que é físico, postará um artigo sobre Física Quântica e outro sobre o Amit Goswami, mas para quem quiser conferir algo sobre o assunto desde agora, no mesmo Portal Unesp podemos encontrar o excelente artigo Mecânica Quântica garante que a consciência altera a realidade?, do físico Dr. Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos). Para ser sincero, a única coisa que concordo com a professora nesse trecho do seu artigo, no que cabe ao contexto do período atual, é que tudo está "uma folia!". Folia sim, mas verdade científica, isso eu duvido muito.



Conclusão


Para finalizar, digo que o intuito dessa breve contextualização histórica e dessa caracterização do cenário atual (incluindo aqui o misticismo), bem como o exemplo que trouxe da professora Leila, é apenas para mostrar a disputa entre a ciência e a religião, assim como a mistificação da ciência. Finalmente, na segunda parte do artigo, discutiremos o quanto a religião deve interferir na ciência, onde defenderei com alguns exemplos que essa interferência não deve existir, simplesmente por uma questão de honestidade e sensatez.
Concluo dizendo que este artigo não tem por objetivo desmoralizar a religião e fincar uma defesa armada da ciência, no ponto que chamei acima de "guerra", mas sim argumentar no sentido que, independentemente da religião estar mais ou menos correta que a ciência, a mesma (religião) não deve estar presente em campos que, definitivamente, estão sob o domínio dos cientistas, tais como o ensino sobre a origem da vida nas escolas e questões acerca da aids, do uso de preservativos ou mesmo sobre curas usando células tronco embrionárias, temas esses confirmados para a segunda parte. Com relação aos místicos que usam da ciência como escudo para suas imposturas e pseudoverdades, estes sim merecem, justificadamente, um levante por parte dos cientistas, mas não falarei deles (neste artigo) mais do que já falei acima. Sendo assim, termino por aqui. Em breve continuo com a segunda parte! Obrigado pela leitura!

P.S.: Me perdoem pelo tamanho do artigo pessoal. Vou tentar deixar a segunda parte mais curta. Até lá!


Referências

- Quebrando o Encanto: a religião como fenômeno natural - Daniel C. Dennett; [tradução Helena Londres], - São Paulo: Globo, 2006.
- http://www.unesp.br/aci/debate/religiao.php
- http://www.unesp.br/aci/debate/quantica.php


3 comentários:

  1. RODRIGO, A MATÉRIA ESTÁ BACANA E VOU ACOMPANHAR, E COM O TEMPO VAMOS VENDO AS COISAS SE ENCAIXAREM, MAS QUE TUDO TENHA UM FIM DE NATUREZA BOA PARA OS HABITANTES DESSE PLANETA, QUE VENHA DA CIENCIA OU RELIGIÃO! PARABÉNS!

    SAMUEL

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  2. porra meninos...cadê poincaré, t. kuhn, leibnitz, entre muuuitos outros cientistas e filosofos da ciencia que sempre a descreveram, classificaram e formalizaram o conceito e as diferenças entre ciencia e religiao...
    ..e quantica e conciencia não vai...não virem aqueles indianos ridiculos...heheheh
    mais muito bom os comentarios..

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  3. Olá Henrique!
    Com certeza muito se foi falado (e obviamente se fala hoje) sobre ciência e religião! Nem precisa ser especialista no assunto para saber que existem muitos filósofos, cientistas e toda uma gama de intelectuais envolvidos no assunto com muito mais gabarito que nós, mas a idéia do blog é desenvolver ensaios sobre assuntos dessa natureza, de tal forma que evitaremos dar uma bagagem muito técnica ou mesmo fazer apenas alusão aos especialistas no assunto, de tal forma que focaremos nossas impressões sobre o tema em questão, por vezes citando outros nomes (como foi feito nesse artigo, sobre o filósofo Dennet).
    Sobre a mecânica quântica, talvez não tenha ficado claro o suficiente no artigo (eu esperava que tivesse), mas somos extremamente contra a abordagem dada a mesma por "profissionais" inescrupulosos com o indiano Amit Goswani. Então, nesse sentido, temos a mesma opinião!

    Espero ter esclarecido alguma coisa sobre o artigo e sobre nossa filosofia!

    Obrigado pelo comentário Henrique! Seja sempre bem vindo!

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