quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Sobre os limites da ciência

Esse texto tem o objetivo de discutir brevemente os limites do conhecimento científico, e será dividido em duas partes claramente distintas: a primeira parte discutirá os problemas filosóficos da ciência, e fará uso de uma parte do mito da caverna, um maravilhoso texto do filósofo Platão. Na segunda parte, discutiremos alguns conceitos científicos que, em algum sentido, se mostraram verdadeiras barreiras ao progresso da ciência no século XX. Na verdade, não é a primeira vez que alguém aqui do Causarum Cognitio dedica um tempo para escrever algo sobre esse tema. Antes, o Rafael publicou “A Ciência e o monstro debaixo da cama” (você pode conferir o texto aqui), um ótimo artigo que gerou também ótimas discussões entre os membros do blog e nos comentários do próprio texto do Rafael. Meu objetivo é continuar essa discussão e ampliá-la para além do campo filosófico tanto quanto possível.



Dos problemas filosóficos : o mito da caverna de Platão



Quando refletimos sobre o papel da ciência na construção do conhecimento humano, dificilmente escapamos de questões fundamentais sobre a própria essência do conhecimento, seja ele científico ou não. Afinal de contas, o que sabemos sobre o mundo que nos cerca? Sobre a natureza, sobre os astros, sobre a vida, ou ainda, sobre nós mesmos? Somos capazes de conceber o mundo exterior da forma como ele de fato é, seja lá o que isso significar? O mundo no qual vivemos poderia ser apenas uma projeção daquilo que podemos sentir e, quando somos capazes, abstrair? A resposta para perguntas desse tipo são em geral especulativas e fogem ao escopo das ciências exatas, cabendo a filosofia e, na melhor das hipóteses, à filosofia da ciência, estudar. Ainda assim, é inevitável que questões desse gabarito nos façam concluir que o conhecimento, em particular o conhecimento científico, não apenas é limitado, mas também muitas vezes questionável e duvidoso.

Na verdade, muitos são os entraves que impedem a ciência de ser um método perfeito, de tal forma que mesmo no campo especulativo podemos formular questões aparentemente irrefutáveis que são verdadeiras pedras no sapato do conhecimento científico. Com efeito, olhemos mais de perto um desses entraves, a saber, aquele que trata dos nossos sentidos e tudo aquilo que atrelamos e eles. Resumindo em duas perguntas: o que é real? Quanto somos influenciados pelos nossos sentidos quando tentamos definir realidade?

Já que tais questões se aproximam mais da filosofia do que da ciência propriamente dita, vamos nos amparar a esta primeira, em particular, à filosofia platônica e ao mito da caverna. O Mito da caverna é o sétimo livro de A República, uma das maiores obras de Platão. Nele, o filósofo mostra um diálogo entre Sócrates e Glauco, irmão de Platão, em que eles consideram uma situação hipotética que representa adequadamente o problema que estamos considerando, sobre a realidade e a forma com a qual lidamos com ela. Platão questiona e exemplifica de forma simples e elegante nossa noção de realidade, como se vê nesse trecho:

Sócrates – (...) Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco – Estou vendo.
Sócrates – Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco - Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu me fala.
Sócrates - Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco - Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates - E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco - Sem dúvida.
Sócrates - Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco
- É bem possível.
Sócrates - E se a parede do fundo da prisão provocasse eco sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco - Sim, por Zeus!
Sócrates - Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados?
Glauco - Assim terá de ser.


A passagem acima de A República mostra que, mesmo no campo da filosofia, existem grandes problemas em admitir que a ciência está isenta de limitações, pois estamos presos a aquilo que julgamos ser a realidade. Construímos nossos modelos e teorias sob a perspectiva daquilo que se apresenta diante de nós, além de que, em algum sentido mais profundo, não somos mais do que uma parte desse mundo que pretendemos explicar, daquilo que julgamos ser a realidade. Por fim, somos parte da matéria e queremos explicar a matéria, e sob esse ponto de vista talvez seja correto concluir que estamos condenados a "enxergar" apenas aquilo que ocorre na matéria que podemos conceber através dos nossos sentidos, ou como comentei mais acima, através da nossa abstração, o que no fundo é quase a mesma coisa.

É sensato, contudo, esclarecer que não pretendo com essa divagação fazer qualquer tipo de apelo espiritual. Muito pelo contrário, pois argumento do ponto de vista materialista. Se não ficarem convencidos, pensem sobre o quanto conhecemos do nosso universo. Temos conhecimento de não mais que cinco por cento da matéria (matéria que conhecemos, ordinária, não escura), e é nessa pequena fração que residem todas as nossas teorias, científicas e não científicas; nesse ponto que apoio meus argumentos. Imagino por um instante, em paralelo ao mito da caverna, que se eu e todos os meus descendentes estivessemos confinadas no meu quarto, seria quase certo que com o passar do tempo faríamos teorias sobre a luz que provém da lâmpada, sobre a origem de tudo aquilo que veríamos na tela do meu computador, sobre os sons externos ao quarto, etc. Não estariam eu e meus descententes todos isentos da verdadeira realidade, e de certo não daríamos conotações extraordinárias e até divinas àquilo que podíamos "sentir" do exterior e mesmo do interior do quarto.? Não estamos nós, hoje, confinados a algum tipo de realidade restrita como no caso hipotético considerado acima, ou como retratado no mito da caverna?



Dos problemas teóricos: um panorama do século XX



Acima refletimos um pouco sobre as limitações filosóficas do conhecimento científico, e vimos que, mesmo se apegando a apenas uma questão, os problemas podem ser muitos. Não obstante, os "problemas" intrínsecos do próprio desenvolvimento científico não são menos catastróficos.

Com o nascimento da ciência moderna de Galileu Galilei e seu método cientifico, o desenvolvimento da ciência conduziu-nos a uma visão perfeccionista de mundo, uma idéia cunhada principalmente no final do século dezessete com a criação do Cálculo e literalemente adorada através do século dezoito, quando as equações diferenciais pareciam descrever o mundo e a ciência avançava no sentido de traduzir os segredos da natureza em todos os seus detalhes. As equações da mecânica de Newton não apenas eram uma das bases mais fortes de toda essa utopia científica, mas conferiam também uma ordem e uma beleza estética à natureza e ao universo antes vista talvez apenas na escola pitagórica. Tal era o cenário da época que Lagrange chegou a afirmar que se pudéssemos isolar as forças que governam cada partícula do universo, poderíamos prever o comportamento passado e futuro de todo o universo em qualquer instante. Não era bem assim, como os contemporâneos dessa geração de cientistas vieram a perceber mais tarde. A idéia de Lagrange, mesmo em uma escala infinitamente menor, se mostrou impraticável, sendo impossível se utilizar do cálculo e das equações diferenciais em vários problemas, e a dinâmica de sistemas com muitas particulas encontraria solução à luz da estatística. O futuro, contudo, guardava outras "restrições" ao sonho dos cientistas de descrever completamente a natureza e o universo.

Com efeito, uma das maiores quebras de paradigma da ciência moderna veio junto com o século vinte. Em 1900, durante o Congresso Internacional de Matemática de Paris, o jovem matemático David Hilbert apresentou uma lista com 23 grandes problemas abertos da matemática. Hilbert, que sonhava com a possibilidade de demonstrar que a matemática era um "sistema fechado", "consistente", listou o segundo problema de sua lista com o intuito de resolver uma parte dessa questão: demonstrar a consistência dos axiomas da aritmética, axiomas esses que são a estrutura de toda a matemática. A resposta, para a decepção de Hilbert, veio em 1931 com o austríaco Kurt Gödel em seu artigo "Sobre as Proposições Indecidíveis", onde Gödel mostrava que a matemática não poderia ser um sistema fechado; em resumo, existem proposições que não podem ser classificadas nem como falsas nem como verdadeiras.

Ora, se a matemática é a ciência que serve de base para as outras ciências; se a natureza parece obedecer fundamentalmente à leis matemáticas, e se essa matemática por vezes não é "confiável", no sentido dos teoremas de Gödel, como podemos esperar que nossas teorias estejam a margem de conclusões ambíguas? Eis uma daquelas pedras no sapato do conhecimento científico. Enquanto a matemática for a linguagem da ciência, estaremos sob a sombra dos teoremas da imcompletude de Gödel.

Mais tarde, a confusão viria da Mecânica Quântica com o princípio da incerteza de Heisenberg. Heisenberg demonstrou que a incerteza quanto a posição de uma partícula multiplicada pela incerteza quanto à velocidade dessa partícula nunca pode ser inferior a uma certa quantidade, a saber, a constante de Planck. Na prática, deixando de lado o formalismo científico, o princípio da incerteza de Heisenberg mostra que não é possível conhecer a posição e a "velocidade" de uma partícula ao mesmo tempo, de tal forma que se concentramos nossas forças para determinar a localização de uma partícula, comprometemos nossa informação sobre sua velocidade, e vice-e-versa. Dessa forma, Heisenberg deixou claro a impossibilidade de executar aquilo proposto por Lagrange, pois com o princípio da incerteza é impossível prever acontecimentos futuros com precisão, pois não é possível medir o estado (exato) de uma partícula no instante presente sem cometar erros.

Por fim, a última cartada da natureza contra os cientistas veio dos laboratórios do MIT em meados da década de 60, em Massachusetts, e se chama caos! A descoberta de sistemas caóticos, que em um sentido prático podem ser pensados como "sistemas que possuem grande sensibilidade com relação às condições iniciais", deve-se a Edward Lorenz (aqui no CC já falamos sobre Lorenz e a teoria do caos). Lorenz descobriu o caos nas suas equações de previsão do tempo e deu início a uma teoria que abalaria a pesquisa científica, no sentido que mesmo sistemas simples, como seria descoberto mais tarde, possuiam alta sensibilidade as condições iniciais, principalmente pela característica não linear da natureza. A previsão de fenômenos da natureza a longa escala ficaria completamente comprometida com a teoria do caos para aqueles sistemas como comportamento caótico, o que, juntamente com o princípio da incerteza de Heisenberg, deixaria os cientistas de mãos atadas em várias situações, senão na maioria delas.

Apesar de tudo, não posso negar que faço aqui, de certa forma, o papel de advogado do diabo. O método científico, ante todas suas limitações, demonstra-se o mais prático e confiável na busca da verdade científica, e a prova disso é que, mesmo com todas as barreiras impostas pela natureza, o século vinte se mostrou muito promissor para a ciência, e hoje gozamos de todo conforto, segurança e progresso proporcionado por ele. Na verdade, as barreiras teóricas e/ou práticas enfrentadas pela ciência são, antes de desanimadoras ou desencorajadoras, motivos para que os cientistas se concentrem cada vez mais em teorias alternativas e novos métodos para contornar eventuais dificuldades, como estas que discutimos mais acima. Eis o cerne da ciência, e o que confere tamanha beleza e confiabilidade a ela.

O fato é que a ciência possui alguns limites aparentemente intransponíveis, o que de certa forma pode implicar que a mesma nunca poderá desvendar todos os mistérios da natureza, pelo menos não da forma como gostaríamos. A cada passo dado, descobrimos que nossas técnicas e modelos, nossa matemática e nossas idéias são insuficientes para explicar alguns fenômenos específicos. Os entraves que discutimos acima talvez sejam os mais importantes, mas existem muitos outros, e as dificuldades em se manter o progresso científico que presenciamos desde os últimos séculos parece crescer na proporção direta a esse progresso, o que talvez possa acarretar num fim, num limite para o qual a ciência não possa mais avançar. Talvez seja esse o destino do conhecimento científico; ou talvez sejamos nós que não enxergamos o suficiente para pautar sobre o futuro da ciência. Teremos que esperar para conhecer a resposta, e ter a certeza de que a natureza, em sua aparente relutância por ser desvendada, ainda vai nos apresentar muitas dificuldades. Felizmente, nossos cientistas estão prontos para elas.




Referências e leituras indicadas


- Stewart, I. Será que Deus Joga Dados? - A Nova Matemática do Caos, Editora Jorge Lahar, 1991.
- Platão, A República
- http://causarum-cognitio.blogspot.com/2009/08/ciencia-e-monstro-debaixo-da-cama.html
- http://causarum-cognitio.blogspot.com/2009/07/muito-prazer-me-chamo-edward-lorenz.html
- http://scienceblogs.com.br/dimensional/2007/11/ic016.php
- Monteiro, L. H. A. Sistemas Dinâmicos, Livraria da Física, São Paulo, 2006.
- http://www.dsc.ufcg.edu.br/~gmcc/mq/incerteza.html
- http://pt.wikipedia.org/wiki/Problemas_de_Hilbert
- http://www.portaldoastronomo.org/tema.php?id=25


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