domingo, 23 de agosto de 2009

Hipácia de Alexandria e a história de uma tragédia

"Ensinar superstições como uma verdade absoluta
é uma das coisas mais terríveis." - Hipácia


Aqueles que estão acompanhando o que escrevo aqui no blog possivelmente dirão que estou pegando gosto por falar quase que exclusivamente sobre grandes nomes (Caetano Veloso, Edward Lorenz e agora Hipácia). Bem, a intenção não era exatamente essa, e eu até escreveria outro artigo para deixar minhas postagens mais heterogêneas, mas não vou fazê-lo, pois esse se trata de um caso especial; se trata de um artigo que quero escrever desde que criei o blog junto com o Rafael e o Marcelo, sobre uma história que me impressionou muito e que todos deveriam conhecer.

Dessa vez, nossa história começa no Egito, mais exatamente na cidade de Alexandria. A cidade foi fundada em 331 a.C, e tem esse nome devido a seu fundador, Alexandre, o Grande, um dos maiores conquistadores do mundo antigo, além de filósofo e distinto discípulo de Aristóteles. Parece haver um consenso de que Alexandria foi uma das cidades mais importantes do mundo antigo, principalmente por sustentar a maior e mais importante biblioteca que já existiu: a famosa biblioteca de Alexandria, que além de tudo foi a primeira universidade do mundo, onde estudaram, dentre outros, grandes nomes como Euclides e Arquimedes! Além disso, o fato de Alexandria estar centrada entre dois importantes mares, – o Mediterrâneo e o Vermelho – e ter sido muito privilegiada pela navegação, desde que está localizada no ponto exato de ligação entre a Europa, a África e a Ásia, fez com a mesma se tornasse o maior pólo intelectual da época, superando inclusive Atenas, que nesse tempo já havia declinado. Filósofos, cientistas, poetas e pensadores que são conhecidos até hoje viveram em Alexandria, sendo esta considerada, digamos, a capital do helenísmo, cujo início dá-se em 323 a.C. com a morte de Alexandre, o Grande. Nesse período, a cidade é tomada pelas idéias neoplatônicas, corrente filosófica que surge com Plotino e que terá como umas das principais representantes Hipácia.



Falar sobre Hipácia (?370 d.C. - 415 d.C.) é complicado por dois motivos. Primeiro, porque sempre é complicado falar sobre o que quer que seja que tenha acontecido há muito tempo atrás, um problema que existe desde que os homens decidiram escrever sua história. Segundo, porque a maioria das informações disponíveis são essencialmente a mesma em meios de comunicação populares, como a internet, por exemplo, o que tem me dado alguma dor de cabeça na procura por novos fatos acerca da sua vida. De qualquer forma, no final do artigo faço algumas indicações de leitura, onde os mais interessados podem ler com mais calma e detalhes sobre sua vida. Por enquanto, esboço apenas um resumo (uma ótima descrição sobre a vida de Hipácia pode ser encontrada em [I] e em [II]), e tiro algumas linhas para uma breve discussão.

Hipácia, pode-se dizer, era um ser humano completo, e talvez a maior filósofa de toda a história. Possuía beleza, sabedoria extrema nos assuntos que interessava aos pensadores da época, além de excelente oratória. Filha de Theon, diretor da biblioteca de Alexandria, se interessou por praticamente todos os assuntos, em especial por filosofia, matemática, astronomia e medicina. Admirada por seu talento e beleza, recusou todas as propostas amorosas de sua vida, dizendo já ser casada com a verdade. Juntamente com seu pai, que também era um gênio, além de seu principal tutor, reuniu toda a informação da época para editar o que seria o segundo livro mais lido do mundo após a bíblia, no formato que conhecemos hoje, e que basicamente dá os alicerces da matemática atual: Os Elementos, de Euclides. Também escreveu alguns tratados sobre grandes personalidades que apenas conhecemos hoje devido a ela, como Apolônio, conhecido como o "grande geômetra", brilhante matemático e astrônomo da época. Hipácia também parece ter sido a principal intérprete de Aristóteles, um dos maiores filósofos de todos os tempos (senão o maior), além de outros grandes filósofos de sua época, de tal forma a atrair pessoas de todo o império romano para ouvir suas explanações. Muito do que sabemos sobre ela, inclusive, é devido a cartas e relatos de seus discípulos e admiradores preservados através do tempo, como este que segue abaixo, de seu aluno e discípulo Hesíquio, o hebreu:



Vestida com o manto dos filósofos, abrindo caminho no meio da cidade, explicava publicamente os escritos de Platão e de Aristóteles, ou de qualquer outro filósofo a todos os que quisessem ouvi-la... Os magistrados costumavam consultá-la em primeiro lugar para administração dos assuntos da cidade.


Ainda na semana passada estive conversando com um dos professores do departamento de matemática aqui do Ibilce, especialista em história da matemática, e o mesmo me disse que Hipácia é considerada a primeira e maior matemática do qual se tem registro, o que confere com o que dizem historiadores como Edward Gibbon, que diz que Hipácia superou todos os filósofos de sua época. Outro a dizer algo sobre ela foi o escritor italiano Enrico Riboni, que nos conta que Hipácia "representava uma ameaça para a difusão do cristianismo, pela sua defesa da Ciência e do Neoplatonismo". Dessa forma, Hipácia começou a ser perseguida pela igreja, pois além de ser totalmente contrária as idéias cristãs, incomodava o fato de ser uma bela mulher, de acordo ainda com Riboni.

Infelizmente, o que mais causa espanto na história de Hipácia é sua morte! Na matemática, marca o fim do que chamamos hoje de matemática antiga. Na filosofia e na ciência, o fim de uma era de glória que só seria atingida novamente na primeira revolução industrial. Isso porque Hipácia era pagã e defendia a idéia de que o mundo é governado por leis matemáticas, além de que era mulher! Vivendo num país tomado pelo império romano, que havia sido convertido ao cristianismo anos antes (350 d.C.) pelo imperador Constantino, o qual reestabeleu as bases dessa religião no famoso Concílio de Nicéia (325 d.C.), um dia Hipácia foi atacada por um grupo de monges cristãos sob ordem do bispo e depois patriarca de Alexandria, Cirilo. Foi então arrastada nua pela rua até uma igreja, onde foi esfolada, teve suas roupas e seus cabelos arrancados e o corpo dilacerado por conhas de ostra afiadas (outros dizem que foi por cacos de cerâmica). Seus membros foram arrancados do corpo e posteriormente queimados na fogueira, fato que marcaria, em algum sentido, o início da Inquisição e da Caça às bruxas, promovidos futuramente pela igreja católica. Em 1882, absurdamente, Cirilo é canonizado e promovido a doutor da igreja por perseguir a comunidade científica e os judeus de Alexandria, e hoje é São Cirilo (gravura ao lado), de acordo com o papa, guardião da verdadeira fé (Veja aqui o papa recordando com amor o nosso querido santo).

Um ano após a morte de Hipácia, que havia se tornado diretora da biblioteca, é cometido o que pode se considerar um dos maiores crimes contra a humanidade: a biblioteca de Alexandria é destruída, fato que se dá devido a crescente influência cristã no império romano e várias investidas por parte de religiosos contra templos pagãos! Embora existam divergências, há relatos que dizem que na biblioteca haviam entre 600 mil e 1 milhão de pergaminhos, que continham toda a história, a ciência, a arte, a filosofia e a medicina da época, desde que todos os navios que passavam por Alexandria eram confiscados e todo o conhecimento a bordo era copiado e enviado para a biblioteca. Sob esse cenário, a comunidade intelectual de Alexandria se desfaz, e filósofos e cientistas migram para a Índia e para a Pérsia. Mais tarde, as escolas de filosofia serão fechadas por Justiniano, o Grande, imperador de roma conhecido por perseguir judeus, pagãos e heréticos. Dentre outras, serão fechadas escolas como a famosa Academia de Platão, provavelmente a maior escola de ciências e filosofia do mundo, e a Escola Filosófica de Atenas, a última das escolas de filosofia do império. Sua postura conduziria não apenas a humanidade ao que chamamos hoje idade média, mas também a Inquisição Católica, iniciada mais tarde, no ano de 1183.

Felizmente, face a toda ignorância e intolerância religiosa, que conduziria a humanidade à idade das trevas e do obscurantismo por mil anos de nossa história; face a todas as crueldades praticadas por cruzadas, inquisições e outros avantes fanáticos deploráveis, que por vários séculos reprimiram de forma covarde o pensamento livre, a liberdade de expressão e o bom senso, Hipácia está eternizada, não resta dúvidas! Seja na carta apaixonada de seu discípulo Sinesius de Cirene, seja na fantástica homenagem prestada por Carl Sagan em um dos maiores trabalhos científicos da humanidade, "Cosmos", seja em Causarum Cognitio, o quadro de Rafael Sanzio que dá nome ao nosso blog, Hipácia será sempre lembrada como o símbolo daqueles comprometidos com a verdade e que são perseguidos por conta dela. É também, ou pelo menos deveria ser, um exemplo para as mulheres comtemporâneas, que até hoje são desvalorizadas, desrespeitadas e por vezes afrontadas, pela sociedade e mesmo pela igreja, como nesse ano, no dia internacional da mulher, quando o vaticano declarou em seu jornal que a máquina de lavar fez mais pela mulher do que a pílula anticoncepcional (A Máquina de lavar e a libertação das mulheres - ponha detergente, feche a tampa e relaxe. L'Osservatore Romano. Veja aqui).

Não gostaria que esse artigo fosse fonte de revolta, mesmo que tal sentimento seja o mais expressivo nessa ocasião. Gostaria, antes de tudo, que servisse como fonte de reflexão sobre nossos valores, principalmente sobre nossos valores humanos e religiosos, que não raro são motivos para divisão, preconceito e intolerância. Pensemos!


Fontes, leituras indicadas e outros:

[I] - http://br.geocities.com/kaderno2004/materias/hipacia/hipacia.htm
[II] - http://praxisfilosofica.blogspot.com/2008/07/hipcia-de-alexandria-c.html
[II] - Bloody History of Christianity, Enrico Riboni (História Sangrenta do Cristianismo, traduzido por Cassy Beski)
[IV] - História da Matemática, Boyer, C.B. (Tradução Elza F. Gomide), Editora Edgard Blücher Ltda,1974
[V] -http://gostei.abril.com.br/frame/index/hipacia-de-alexandria-a-primeira-cientista-da-historia
[VI] - http://www.formadoresdeopiniao.com/?p=2898
[VII] - O Declínio e a queda do Império Romano, Edward Gibbon
[VIII] - Série Cosmos, Carl Sagan
[IX] - Introdução à História da Matemática, Eves, H. (Tradução Hygino Domingues), Editora da Unicamp, 1995.
[X] - Hypatia, or new foes an old face, Charles Kingsley, New York: E. P. Dutton, 1907.
[XI] - Hypatia of Alexandria, Maria Dzielsk, trad. F. Lyra, Cambridge, M. A.: Harvard Press, 1995
[XII] - http://pt.wikipedia.org/wiki/Justiniano_I


P.S.: Confiram o Filme Ágora, do espanhol Alejandro Amenábar, que estréia agora, em 2009, e contará a história de Hipácia de Alexandria!

Leia Mais…
 
BlogBlogs.Com.Br